“História colonial romantizada serve para capitalizar lugar no presente europeu”

23 de julho 2023 - 14:52

O livro “O Atrito da Memória” enfrenta os discursos e os silêncios sobre colonialismo, guerra e descolonização. Ao Esquerda.net, o historiador Miguel Cardina afirma que “abdicar da disputa dos sentidos do passado é consentir que proliferem visões mitificadoras da história e os usos públicos nocivos delas decorrentes”. Entrevista de Jorge Costa.

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No livro, identificas uma política de silenciamento sobre os crimes do Exército português na guerra colonial. Estamos perante uma ação sistemática do Estado? Que valor atribuis às declarações do presidente da República e de outros representantes do Estado nos últimos anos?

O conhecimento histórico sobre esse período é hoje muito grande, mas há aspetos que continuam na penumbra. Um deles é justamente o dos massacres coloniais - no contexto da guerra e não só. Tem havido investigação sobre o assunto e algum debate público, mas isso não é suficiente. Na verdade, não sei se se pode falar de uma ação sistemática do Estado para ocultar esses temas, mas há certamente uma falta de vontade sistemática em conhecer essa realidade e em enfrentá-la. Não tem ser assim e não foi sempre assim. Como mostro no livro, é sobretudo pós-1976 que as ações de silenciamento se vão constituir e configurar mais claramente um “esquecimento organizado” sobre a violência colonial.

Eu creio que isso hoje está a mudar. As declarações do presidente Marcelo, de António Costa e de Augusto Santos Silva sobre Wiriyamu são um exemplo dessa pequena mudança, ainda que depois não tenham resultado em passos concretos. Teria sido bom aproveitar esse reconhecimento de um conhecido massacre para tornar mais acessíveis os arquivos, estimular o intercâmbio entre investigadores dos diferentes contextos, discutir o sentido de eventuais mecanismos de reparação, acionar políticas públicas de rememoração do passado colonial capazes de ultrapassar a naturalização do lusotropicalismo - quando não mesmo a celebração acrítica do império, etc.

Importa dizer que essa mudança discursiva acontece porque há hoje uma opinião pública, muito estimulada por movimentos antirracistas e por pessoas racializadas - em articulação (por vezes, tensa, o que é natural) com a academia, com o campo artístico e cultural, com as esquerdas políticas -, que já não aceita o apagamento do racismo e que sabe que isso não é indissociável da mitificação nacionalista da história. Nos próximos anos, que poderá vir de bom resultará da capacidade de aprofundar aquelas articulações.

Nas décadas da democracia multiplicaram-se os momentos de celebração saudosista da construção do império, umas mais exuberantes, outras mais subtis (é o caso da Expo’98, centrada nos “oceanos” e no “futuro”). As narrativas do “destino atlântico” e do “destino europeu” de Portugal são concorrentes ou complementares?

Creio que são as duas coisas. Houve uma aposta europeia das elites políticas – ou de uma parcela tecnocrática dessas elites – que se tornou clara no período final da ditadura. No contexto pós-revolucionário, um amplo consenso ao centro levará o país a trilhar o caminho europeu, ao mesmo tempo que há uma redefinição identitária do país, para a qual colaboram muitos intelectuais, que redesenham essa imagem, agora dominante, de um “Portugal europeu”. A “Europa”, ou melhor, a CEE e depois a União Europeia surgem como uma espécie de “novo lugar natural” do país, derrotado que foi o colonialismo e a ideia de um país-império. Nessa medida, foram dois imaginários concorrentes, em que um veio substituir o outro.

Mas parece-me mais interessante apontar as continuidades e coexistências. Em primeiro lugar, importa notar que os imaginários coloniais se constituem a partir da Europa, com traços profundamente eurocêntricos, mesmo que diferentemente declinados em função da história e da natureza dos diferentes colonialismos. Depois, é interessante também perceber como, sobretudo a partir da década de 1980, a pertença europeia de Portugal é afirmada a partir de narrativas sobre o seu papel pioneiro no “encontro de culturas”, o cosmopolitismo, a secular presença noutros continentes, operando uma mobilização da história colonial – romantizada e extirpada dos seus aspetos inconvenientes – para capitalizar um lugar na história e no presente europeu. Um lugar subalterno, diga-se. E que, por isso, torna este imaginário (pós-)colonial particularmente evocado na gramática dos nossos governantes. 

Falas do fenómeno da deserção à guerra colonial como “um caso de contramemória”. O silenciamento desta massiva desobediência prova que ela continua a ser subversiva, mesmo sob a democracia, meio século depois?

A memória da desobediência à guerra ainda é incómoda. Há alguns anos, a Susana Martins e eu próprio publicámos um artigo com dados sobre desertores, refratários e faltosos, que aponta para a importância de um fenómeno que foi sendo desvalorizado. É um fenómeno muito diverso, que se articula com a vaga migratória desses anos, mas que tem também a ver, naturalmente, com a quebra de legitimidade do regime e da guerra, ainda que seja importante ter em conta motivações e percursos muito diferentes. 

No livro, recupero alguma dessa discussão e mostro como a deserção se foi constituindo como um campo contramemorial: ou seja, como uma memória subalterna relativamente à memória dominante da guerra no país, mas que tem vindo a ser também uma memória que desafia os tópicos recorrentes a partir dos quais se narra o passado da guerra, muito construídos em torno da memória dos combatentes e do apagamento da violência. E onde outras questões mais culturais, digamos assim - relativas à honra, ao dever patriótico, à masculinidade, etc. - não deixam também de comparecer.

A extrema-direita tem hoje força parlamentar e faz comunicação de massas com a ideologia do colonialismo, o lusotropicalismo e o racismo. Como respondes a quem diz que é melhor não “reabrir feridas antigas”? 

Onde começa a extrema-direita

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As batalhas do presente fazem-se também pela disputa dos sentidos do passado. Abdicarmos disso é consentirmos que proliferem visões mitificadoras da história e os usos públicos nocivos delas decorrentes. As visões que negam a dominação colonial, a violência, a segregação ou o racismo não são apenas a enésima aparição reconfigurada dos velhos tópicos lusotropicalistas. São visões para uso político contemporâneo que não são apenas oriundas da extrema-direita. Se fossem, tudo seria mais fácil. A extrema-direita pega nelas porque o programa de dominação que defende tem nas opressões de raça, classe e género um eixo central e faz da mitificação nacionalista a sua bandeira. Mas se há coisa que creio que fica clara lendo o livro é que há um discurso ainda dominante que não é contrário – na verdade, é muitas vezes contíguo – a tópicos que depois a extrema-direita amplifica. Por isso mesmo é que é tão fundamental disputar um certo senso comum sobre o passado colonial.


“O Atrito da Memória” é uma edição da Tinta da China. 

O historiador Miguel Cardina é dirigente do Bloco de Esquerda e colunista do Esquerda.net.